Desistência de Simone Biles reforça papel da saúde mental no esporte

Loic Venance/AFP – 27.07.2021
Duas das principais estrelas de Tóquio 2020, Simone Biles e Naomi Osaka revelaram ao mundo problemas psicológicos. A ginasta norte-americana optou por desistir da competição, mesmo classificada para a final. Já a tenista japonesa, uma das favoritas na modalidade, foi desclassificada ainda nas oitavas.
Após conseguir uma pontuação considerada baixa para seu nível durante a apresentação por equipes, Biles pediu para ser substituída e, nesta quarta-feira (28), e optando por abandonar a competição individual também.
Emblemáticos, os episódios alçaram ao debate a questão sobre a saúde mental dos atletas de alto nível. Neste sentido, o psicólogo João Ricardo Cozac, presidente da Associação Paulista da Psicologia do Esporte e que há 30 anos acompanha atletas em diferentes modalidades, é categórico ao afirmar que o esporte de alto rendimento está longe de ser um lugar psicologicamente saudável.
Ele explica que, se não acompanhados desde o início da carreira, os atletas são duramente impactados pelo mundo que compõe o espetáculo esportivo e, dentro deste contexto, atletas que poderiam triunfar acabam tendo o desempenho reduzido e o sofrimento aumentado.
“Os atletas de alto rendimento trazem em si exigências que não são simples, que mexem com autoimagem, identidade e autoestima. O importante da Simone Biles revelar seu estado interno é um fortalecimento para que os demais atletas também possam reivindicar uma qualidade melhor desse perfil psicológico e emocional desde o início das suas carreiras”, afirma.
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Ele destaca que o suporte psicológico é necessário não apenas nos momentos de pressão ou derrota. “O treinamento psicológico é a base da pirâmide do treinamento esportivo. Em um lado desse triângulo está a preparação física, do outro a preparação tática e técnica e, na base, a preparação psicológica”, explica.
“Você não pode criar atletas com corpos de aço, técnicas de aço e a base de barro. No momento em que tudo desaba, não adianta ter talento e medalhas, o que importa é o suporte emocional”, afirma o especialista.
No caso de atletas que iniciam a carreira ainda na infância, como na ginástica, por exemplo, Cozac explica que o impacto da pressão pode ser ainda maior se não houver um acompanhamento especializado.
“Quando a Simone Biles fala sobre a vida para além da ginástica, o que ela quer dizer é que há um ser humano que abdicou de uma infância, da adolescência e início da fase adulta em nome do esporte e em alguns momentos essas vivências fazem falta para que o desenvolvimento emocional possa ocorrer de uma forma natural e saudável”, ressalta o psicólogo.
Para ele, o caso da norte-americana é um grande sinal de alerta para que a comunidade esportiva pense na saúde mental dos atletas com mais seriedade e que este treinamento psicológico seja prioridade durante todo o percurso da carreira.
“O peso da fama e das expectativas é quase insuportável para alguns atletas, dependendo do perfil de personalidade e das vivências anteriores no período de desenvolvimento da infância. Atletas silenciosamente vivem um retrato de desequilíbrio das emoções e uma tentativa de adaptação às exigências. Não raro, o final dessa equação são as síndromes e a desistência precoce da prática esportiva, quadros agudos de depressão e crises de ansiedade”, diz Cozac.
O psiquiatra Henrique Bottura, mestre em psicologia do esporte pela Unesp (Universidade Estadual Paulista) e integrante do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, chama a atenção para a forma com que os atletas estão acostumados a lidar com os sentimentos.
“Todo mundo está sujeito ao adoecimento mental. Sabemos que uma pessoa está deprimida porque ela começa a ficar mais triste e a perder o prazer no que faz. Mas o atleta é um especialista em suprimir as suas emoções para dar conta do seu objetivo, ele está acostumado a levantar quando se machuca, então esse aspecto emocional de tristeza é pouco percebido por eles”, afirma o especialista.
Bottura destaca que, no caso de competidores de alto nível, os sintomas de adoecimento mental costumam ficar evidentes nos resultados das competições e no desempenho durante os treinos. “É como se a emoção estivesse conversando por outro caminho, então ocorre um declínio da funcionalidade, com aspectos menos conectados diretamente com a emoção”.
Além disso, o psiquiatra explica que, assim como qualquer pessoa, a vida fora dos treinos e competições também reflete na saúde mental dos atletas. Histórico de depressão na família também pode atuar como um fator biológico do adoecimento.
“A despeito da Simone Bailes e outros tantos atletas serem geniais, eles também são pessoas como a gente, que acordam, vão para o trabalho e têm questões familiares. Pouco valor é dado para o adoecimento mental em termos de saúde como um todo e esse episódio mostra que ela, que coleciona medalhas olímpicas, também sofre e tem medo”, afirma.
No caso de atletas mais jovens, como a skatista Rayssa Leal, que aos 13 anos conquistou uma medalha de prata nos Jogos Olímpicos, Bottura destaca a importância do apoio da família e de um acompanhamento psicológico desde o começo da carreira – que ela revelou receber. “É preciso cuidar e monitorar a saúde mental deles ao longo do processo de crescimento e da carreira”, afirma o especialista.
Durante as competições, a skatista estava constantemente em contato com a mãe e chamou a atenção pela tranquilidade, chegando a fazer dancinhas antes de entrar na pista. Na internet, torcedores brasileiros descreveram a atuação de Rayssa como uma criança brincando durante o recreio da escola.
Sebastian Coe, dono de quatro medalhas olímpicas e hoje presidente da World Athletics (antiga Iaaf, a Federação Internacional de Atletismo), se permitiu comentar o caso de Simone Biles. Em entrevista oficial no auditório principal de Tóquio 2020, o ex-corredor inclusive deu uma dica para a ginasta.
“É um momento particularmente desafiador para todos os competidores depois desse ano e meio parado por conta do lockdown”, começou Coe. “O conselho que dou para qualquer atleta é pedir ajuda. Peça ajuda para os seus companheiros, para os seus amigos. Não tenha medo de mostrar a sua vulnerabilidade. É uma medalha de honra querer essa ajuda.”
A capitã do time vice-campeão olímpico no softbol, a norte-americana Haylie McCleney, também prestou sua homenagem para a compatriota.
“A pressão que acompanha você ao competir nesse nível é uma coisa que simplesmente não se pode descrever ao menos que você tenha passado por isso. É muito difícil. Só quem está aqui sabe o quão grave é isso”, disse Haylie.
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Fonte: Esportes R7