Notícias

Hotel de charme reconstrói suíte do casal Vinicius de Moraes e Gessy Gesse; diária custa a partir de R$ 700

Nu, deitado na banheira onde passava boa parte do tempo, Vinicius de Moraes apreciava, com os olhos perdidos no “encontro de céu e mar”, o vai e vem das ondas de uma Itapuã poética dos anos 1970. Sobre a peça havia uma tábua de madeira que apoiava o copo de uísque – chamado de cachorro engarrafado – e o caderno onde ele anotava os versos que, mais tarde, se tornariam clássicos da música brasileira.

Uma vez por outra, o livrinho de anotações era substituído pela máquina de escrever de onde brotou o poema Tarde em Itapuã, que Toquinho, seu parceiro musical de uma vida inteira, encontrou ainda na velha SCM Smith Corona, modelo Classic 12, de origem americana. Diante de tão belos versos, o paulista não resistiu e pediu para musicá-los, mas o poeta negou dizendo que ia dar era pra Caymmi.

Inconformado, Toquinho roubou a letra durante a noite, antes de embarcar para São Paulo. Três dias depois, voltou à Bahia com a música pronta e arrebatou Vinicius. O resto da história a gente já sabe: juntos, os dois cantaram mundo afora e fizeram de Tarde em Itapuã uma das mais famosas e mágicas canções da dupla. De quebra, ainda colocaram o idílico bairro de Salvador no mapa mundial.

Foi dos janelões envidraçados da casa sem muro, pé na areia – projetada em 1974 pelos arquitetos Jamison Pedra e Sílvio Robatto – que Vinicius de Moraes curtiu sua temporada de ócio criativo, depois de pedir exoneração do Itamaraty, para viver uma de suas histórias de amor mais longas, por sete anos, com a musa baiana Gessy Gesse.

Banheira onde o poeta escreveu Tarde em Itapuã

Quase duas décadas mais tarde, de uma outra janela, a paulistana Renata Prosérpio apreciava diariamente, do hotel que construiu ao lado, a beleza da casa do poeta e imaginava as histórias de amor vividas ali pelo casal e o bate-papo de Vinicius com muitos artistas que circulavam por lá. “Ficava olhando com muito respeito para aquela casa, imaginando aquele universo, a atmosfera cheia de arte, de histórias, de poesia, de pessoas”, conta a empresária. Até que um dia, lá pelo começo dos anos 2000, a casa foi colocada à venda. A empresária se animou, mas teve que driblar a intenção de uma construtora que planejava demolir e construir um condomínio. “Um projeto modernista daquele, feito especialmente para o poetinha, que dialogava com uma brasilidade tão única, não podia sumir”, sonhou.

Foi então que a família Prosérpio decidiu comprar a casa e transformá-la num restaurante anexo ao hotel. Mas queriam deixar nela a marca do poeta. Assim nasceu a Casa di Vina, um espaço restaurado que preserva parte da obra e a história de Vinicius de Moraes, graças a uma pesquisa criteriosa e a curadoria da própria Gessy Gesse, sétima mulher do autor e para quem ele construiu o lar.

Documentos como a lista de convidados para a inauguração da casa

A proposta, abraçada pela filha Luísa Prosérpio, foi montar ali um memorial, aberto à visitação pública, onde estão expostos fotos, documentos do casal, objetos originais como a máquina portátil, poemas manuscritos e cartas de juras de amor. Tudo cedido, gentilmente, por Gessy. Tem até a lista de convidados para a inauguração da casa, rabiscada pelo poeta, com um alerta em negrito: “Festa sem jornalistas. Proibir a entrada!”.

Outros objetos, selecionados em antiquários e brechós, criam proximidade com as peças originais e inspiram o visitante a reviver as famosas tardes em Itapuã. É neste clima que canções como Onde Anda Você e Tonga da Mironga do Kabuletê foram criadas.

Objetos sacros revelam a crença do poeta que antes de chegar a Itapuã era agnóstico
A foto do casal emoldurada em uma das paredes

Aliás, Gessy Gesse conta que, quando criança, usava muito a expressão A Tonga da Mironga do Kabuletê e que Vinicius se inspirou nela para escrever a letra. A musa garante que nunca revelou o significado pra ninguém, nem mesmo para o marido. “É uma coisa muito feia”, ri. E emenda desmentindo Toquinho, que alardeou ter arrancado dela a explicação.

A gastronomia é outro atrativo do Casa di Vina

Recentemente, a casa, que reconstrói ao máximo a passagem do poeta, foi anexada ao hotel e teve três dos seus quartos adaptados para hospedagem. Inclusive a suíte onde o poeta amou, batizada com o nome dele e decorada com poemas. 

A cama original do casal foi milagrosamente resgatada, por um valor simbólico de R$ 5 mil, de uma colecionadora de antiguidades. O custo da diária para usufruir da experiência de dormir no leito do casal é a partir de R$ 700.  

No banheiro do quarto, ainda há um painel original do artista Ugo Knoff e a torneira em formato de peixe. São dois banheiros, o da banheira do poeta e o de Gessy Gesse equipado com um mezanino para onde Vinicius fugia quando a casa começou a ser vigiada pelos fãs. Também pudera, o amigo e traquino Calasans Neto fez uma plaquinha e colocou na fachada: “Aqui mora Vinicius de Moraes”.

(Foto:Tati Freitas/Divulgação)
Monica Salmaso canta repertório de Vinicius

Toda essa reconstrução virou a Casa di Vina Boutique Hotel, reinaugurada na semana passada, com um show da cantora Mônica Salmaso para convidados especiais e Gessy Gesse. A intenção de trazer uma cantora tão suave, diz Luísa, era reconstruir o clima sereno do fim da tarde, com um repertório das canções de Vinicius. A reforma da casa levou seis meses e custou R$ 1,5 milhão.

Cama onde Vinicius dormia com Gessy foi encontrada na mão de um colecionador e voltou à suíte

Ninho de amor

Foi Maria Bethânia que apresentou Gessy Gesse a Vinicius de Moraes em 1969. O casal celebrou a união em 1973, na Bahia, em um ritual cigano, com corte de pulsos para misturar seus sangues. Tudo isso testemunhado por Jorge Amado e Zélia Gattai e Calasans Neto e Auta Rosa, fiéis frequentadores da casa e padrinhos dos noivos. Na Bahia também, Vinicius, até então agnóstico, foi fortemente influenciado pela riqueza espiritual do terreiro de candomblé de Mãe Menininha, onde se descobriu filho de Oxalá. Essa mudança refletiu na produção artística, considerada uma das mais criativas da carreira. São dessa fase as canções icônicas Meu Pai Oxalá e Samba de Gessy.

O casamento foi eterno enquanto durou, conta Gessy. Mas a história de amor é guardada por ela até hoje, aos 86 anos. Revela que costumava encontrar surpresas na xícara do café da manhã, como uma flor ou um poema. De vez em quando, o poeta escrevia versos nas lingeries dela, cujas réplicas estão expostas na suíte que foi deles. Gessy lembra com saudade, mas ao mesmo tempo diz sentir um certo alívio de saber que o poeta não está assistindo as atrocidades pelas quais o mundo vem passando. “Ele era sensível demais!”, observa.

A temporada em que Vinicius viveu na Bahia não apenas movimentou ainda mais a efervescente cena cultural local dos anos 70, como enriqueceu a obra do poeta/compositor. Seja pela convivência com amigos como Jorge Amado, Dorival Caymmi, Batatinha, Calasans Neto, Auta Rosa e Olga de Alaketu,  seja pelas andanças no terreiro de Mãe Menininha que o fez repensar o medo que tinha de avião e desistir das longas viagens que fazia de barco.

Quadro desenhado por Calasans Neto decora uma das paredes

Foi Calasans – artista visual e vizinho – o primeiro a difundir o novo nome que Vinicius deu ao bairro: Principado Livre e Autônomo de Itapuã. Sua mulher Auta Rosa contava que o poetinha era presença constante na casa deles. Ela dizia que Vinicius já chegava com o copo de uísque na mão e não gostava de almoçar. “Só que eu tirava o copo dele e o fazia comer”, revelava.

Comida, aliás, não era muito o forte do poeta. Exceção para um prato que a mulher preparava para ele: o Frango à Gessy, cuja receita ela cedeu para o restaurante Casa Di Vina. O prato é um sucesso entre os fãs do ilustre morador.

A arca de Vinicius

Gessy lembra que o autor da obra infantil A Arca de Noé, feita em parceria com Toquinho e gravada com outros grandes cantores da MPB, era apaixonado por animais e fez da casa de Itapuã sua própria arca. “Ele tinha uma verdadeira fauna que ia de um veado, apelidado de Toquinho, a um filhote de jaguatirica”.  

No meio de tanto bicho, Gessy destaca o seu preferido, um macaco-prego que chamava Homero e vivia grudado nela. “Todo dia de manhã, Dolores, nossa governanta, abria a gaiola de Homero e ele ia direto pra nossa cama. Vinícius adorava essa amizade, mas amava mesmo era um casal de araras que tínhamos lá e uma perua, muito feia por sinal, que batizou de Eurídice. Dizia que aprendia mais com os animais do que no Itamaraty”, ri.

Piscina original da casa

Como não se adaptou ao Rio de Janeiro, Gessy sugeriu ao poeta vir morar na Bahia, e ele prontamente aceitou. A ideia era viver um tempo no ócio. Mas nem tudo foram flores. Com a saída do Itamaraty, o dinheiro diminuiu, e a solução foi fazer shows pelo mundo, com a companheira de produtora e figurinista. “Apesar de tudo era divertido”.

Nessa fase relax, Gessy deu logo um jeito de mudar o guarda-roupa do marido e trocou as peças tradicionais de diplomata por batas e acessórios como colares, contregum, uma mistura de trajes do candomblé com peças hippies dos anos 1970.

Na casa de Itapuã, a poucos passos do mar, onde ele costumava dizer que queria morrer, o poeta produzia muito, mas também divagava demais. “Ele era diabético, mas dizia que comeria doces até desfalecer em seu cantinho predileto, a banheira”, conta Gessy.

(Foto:Tati Freitas/Divulgação)
Renata e Luiza Prosérpio entre a ex-dona da casa, a atriz Gessy Gesse

Por ironia do destino, Vinicius morreria, tempos depois, numa banheira em um apartamento no Rio de Janeiro, mas sem as guloseimas e a visão poética do encontro de céu e mar. De companhia apenas o indefectível copo de uísque na mão, que costumava beber bem devagar, para ir sentindo a terra toda rodar. 

Serviço: 
CASA DI VINA BOUTIQUE HOTEL & RESTAURANTE
@casadivinabahia
Rua Flamengo, 44, Farol de Itapuã
Tel: (71) 99711-3374 
Memorial e Restaurante: abrem de segunda a sábado, das 12h às 23h; aos domingos, entre 12h e 22h.

Fonte: Correio

Mostrar mais

Artigos relacionados

Botão Voltar ao topo